ramirez

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

rh+

Quando criança escreveu um poema para a avó na ocasião de sua morte. O poeminha simples era escrito com as mesmas letras garranchudas que puxara aos bilhetes da mãe; no caderno que o padrastro ganhara de brinde no escritório e lhe passara assim sem qualquer criatividade; com a caneta do pateta emprestada ao irmão mais moço – fruto de uma viagem à disneylândia da qual ele não participou por castigo pela tentativa de assassinato do gato da família, o Trovão (sob custódia da geladeira); na mesa de cozinha em azulejo e ferro que fora da tia-avó, concentrada no jardim de inverno da fazenda que o avô décadas antes comprara com o dinheiro da loteria.

Ao acaso de estar escrevendo ali, a sorte grande do avô outras duas vezes na loto da cidade, que sustentou a estadia das três irmãs e da avó na grandeza do Belo Horizonte, o científico e a faculdade de química e psicologia, os animados passeios no drive-in Xuá's, o motel com o segundo namorado, o feijão tropeiro no Lucas depois da bebedeira, a festança do primeiro casamento, a louça que até hoje faz parte do jogo de jantar da casa no Rio, o carro no qual conheceu o segundo marido, e a conta do parto do primeiro filho – da qual o segundo marido pagou somente a vacina, porque a criança, diferente da mãe, nascera RH+.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

história inverídica

Nasce David. Ganha Ramirez no sobrenome. Nasce pródigo, berço tradicional, posição econômica privilegiada. David R. leva o carimbo da esperança na ponta dos dedos. É todo ele esse poço profundo de perspectiva. Um projeto singular, sim, mas não um único poço. David R. essencialmente não tem nada de especial. Nada faz com que ele seja tido como maior do que os homens já crescidos.

Acontece que antes mesmo de David R., vieram as contradições e antes das contradições, as perguntas e indagações. Muito maior que David R. era ele próprio e o passado que o precedera. O pouco que lhe restara era o que tinha pela frente. Era inevitável que o passado lhe roesse a testa sob o peso hermético da gravidade. E era ainda contraído no corpo de um recém-nascido, mas já pensara tudo gravemente.

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